Um ano de massacre na Palestina: quem são os terroristas?
Como a narrativa dominante é usada para criminalizar a resistência palestina e silenciar a luta legítima por liberdade e justiça
08|10|2024
- Alterado em 09|10|2024
Por Sâmia Teixeira
Há cerca de um ano, logo após a ação do Hamas contra Israel em 7 de outubro, gravei um vídeo para as redes sociais do Nós, Mulheres da Periferia e, posteriormente, uma coluna sobre os dois meses de ataques e o Natal de 2023 na terra onde o menino Jesus nasceu. Nessas ocasiões, disseram que eu estava apoiando o terrorismo, ou que era eu mesma uma terrorista, simplesmente por dar algum contexto histórico que explicasse o direito inalienável dos palestinos aos seus territórios e à autodefesa – tão exclusiva aos israelenses.
Essas acusações me levaram a refletir sobre o que realmente está em jogo nesse debate, e como a narrativa dominante tende a obscurecer a verdadeira questão: o direito dos palestinos à liberdade e à dignidade. Uma luta de anos.
A reação de 7 de outubro se dá pelo fato de os palestinos serem submetidos, há décadas, a um sistema de ocupação violento de limpeza étnica, encarceramento em massa, imposição de leis discriminatórias, expulsão de suas casas, restrição de deslocamento, negligência ou impedimento de acesso a serviços básicos, dentre outras inúmeras violações de direitos humanos constatadas por organizações internacionais e configuradas, inclusive, como características de apartheid.
Desconstruir a narrativa de Israel
Depois de um ano daquelas mensagens, posso dizer tranquilamente que em nada me incomoda que pensem que eu apoio o terrorismo, por apenas considerar uma questão tão humana, por condenar uma violência tão escancarada e impune. Porque no final das contas, é muito simples: o que temos visto nesse longo ano é uma escalada criminosa da limpeza étnica na Palestina ― e os terroristas não são os palestinos.
Em meio a essas atrocidades, surge uma questão crucial: como ainda, diante de tanta violência, o termo “terrorismo” tem sido distorcido e manipulado?
Nesse período não passei um dia sequer sem ter visto crianças aos pedaços, mães chorando um luto sem dor igual, filhos desamparados diante do assassinato de seus pais e familiares.
Não eram conteúdos reutilizados, como tem feito a maior parte da imprensa ao resgatar o “7 de outubro” em qualquer oportunidade. Nas redes sociais vi jornalistas palestinos que bravamente mostravam, dia após dia, um recomeço de incessantes ataques militares contra civis. Dia após dia, um novo crime de guerra. Dia após dia, mais e mais mortes.
7 de outubro de 2023
Em resposta a décadas de opressão sofrida nas mãos de Israel, o grupo palestino Hamas promove a operação “Inundação de Al Aqsa”, um ataque militar que impôs grave derrota ao exército israelense. A partir deste dia, Israel inicia o atual massacre contra os palestinos em Gaza e na Cisjordânia.
Para os que controlam a narrativa global, chamar de terroristas aqueles que resistem à violência sistemática é uma ferramenta poderosa. Mas a escalada da violência israelense contra o povo palestino tem exigido e facilitado que a sociedade reveja não somente suas definições de violência como também de justiça e resistência. E isso é muito importante, afinal, rotular quem luta por liberdade como terrorista é a primeira linha de defesa de quem mantém regimes de opressão.
Nelson Mandela, Martin Luther King, Malcolm X, Patrice Lumumba, Rosa Parks, Angela Davis, Desmond Tutu e outros ativistas históricos que lutaram por direitos humanos e por um mundo diferente foram listados como terroristas. Ou seja, na história, a criminalização de quem se opõe a regimes autoritários, colonialistas, supremacistas e violentos não é novidade.
Com a realidade palestina não é diferente. Ser definido como terrorista é o preço que os palestinos pagam por se recusarem a aceitar a opressão contínua e sistemática de suas vidas e territórios.
Nosso apoio é fundamental
Nesse marco de um ano da intensificação dos ataques israelenses nos territórios palestinos, qual o balanço do massacre para além da destruição e do número em escala massiva de mortes e feridos?
Em Gaza, mais de 42 mil palestinos foram mortos, sendo 60% desse número mulheres e crianças, e mais de 100 mil feridos.
Para se ter dimensão dos números, segundo dados do próprio exército israelense, a cada hora 15 pessoas são mortas – seis são crianças -, 35 são feridas, 42 bombas são lançadas, e 12 prédios – incluindo hospitais, escolas e templos religiosos – são destruídos.
Há ainda corpos em Gaza que nunca serão contados, que já se desfizeram sob escombros, ou que foram enterrados em valas comuns por soldados israelenses, além de palestinos sequestrados, incluindo crianças, que foram presos, torturados e desaparecidos.
Na Cisjordânia ocupada, onde o Hamas não atua, ao menos 723 palestinos foram mortos, incluindo 160 crianças.
Como agravante, após a reação iraniana, civis de outros países da região, como Líbano, Síria e Iêmen têm sido alvo de bombardeios israelenses. Somente no Líbano, ao menos 2 mil pessoas foram mortas.
Sim, os números importam, e muito. No entanto, vale o exercício de olharmos para a derrota histórica de Israel na disputa de narrativas, o aumento da solidariedade internacional – nunca vista neste nível desde a guerra no Vietnã – e a pressão popular sobre os governos para que rompam relações com o Estado de Israel.
O artista porto-riquenho Residente, rapper do grupo Calle 13, disse em vídeo [muito didático e bom de ser compartilhado por sinal] que não é preciso estudar história ou ser um grande especialista no assunto para entender que Israel mata inocentes com o objetivo de tomar todo o território histórico. Portanto, tomemos todos nós o assunto em nossas mãos. Sem medo!
Se há algo que o povo palestino nos ensina – e que devemos honrar e apoiar – é a convicção de que o projeto etnocrático-racista-supremacista-colonialista de Israel precisa acabar.
O povo palestino nos ensina vida
Em artigo anterior, compartilhei com vocês sobre como a força palestina atravessa tempos, com a definição deste território como “uma mãe que pariu uma memória indestrutível”. Não à toa, neste massacre Israel matou mais mulheres e crianças.
Raffef Ziadah, poetisa palestina que ficou conhecida por seu poema “We teach life, Sr.” (Nós ensinamos vida, senhor), sintetiza a força geracional dessa resistência em suas palavras poderosas: “Então, deixe-me dizer que o útero dentro de mim trará a próxima rebelde. Ela carregará pedras em uma mão e uma bandeira palestina na outra”.
A poesia de Raffef ressoa profundamente porque capta a essência da luta palestina, uma luta que não é apenas de hoje, mas uma resistência transmitida por úteros feitos de punhos cerrados. É um lembrete de que, enquanto houver uma criança nascendo sob ocupação, haverá resistência. Enquanto houver memória, haverá luta. As pedras nas mãos dos palestinos, as bandeiras, os gritos, a poesia—tudo isso é parte de uma história que insiste em não ser apagada, não importa quão brutal seja o esforço de Israel para fazê-lo.
Essa resistência, como Raffef nos lembra, não é apenas física. E talvez nem seja mortal. Mahmoud Darwish, um dos maiores poetas palestinos, capturou essa dimensão quando afirmou em uma conversa com o cineasta Jean-Luc Godard: “Se eles nos derrotarem na poesia, então será o fim. Mas existe outro significado para isso: é que a vitória ou a derrota não se medem em termos militares”.
Darwish sabia que a luta palestina não podia ser definida apenas pelo número de mortos ou pelo avanço da limpeza étnica. E acreditava que enquanto houver poesia, memória e crianças que crescem convictas da luta, a Palestina não pode ser derrotada. Para além disso, ela será, justamente, retomada, do rio ao mar.
O uso legítimo da força
O genocídio perpretado por Israel na Palestina, com requintes dignos de referência ao nazismo, não é apenas uma batalha territorial. É uma disputa de narrativas. O controle das palavras é tão estratégico quanto o controle das fronteiras. É por isso que a palavra “terrorismo” é tão frequentemente usada para descrever os palestinos que lutam pela sua terra e liberdade.
Leila Khaled, uma das figuras mais conhecidas da resistência palestina, também foi rotulada como terrorista por suas ações durante a década de 1970. Ao sequestrar aviões, Leila chamou a atenção internacional para a causa palestina de uma maneira que poucos antes dela haviam conseguido. Em uma entrevista que fiz com ela há 12 anos, ela afirmou que: “quando você usa o poder, quando você usa força, o mundo passa a te dar atenção”. Leila sabia que a resistência palestina tinha que ser vista, ouvida, sentida. Sem essa visibilidade, a Palestina permaneceria esquecida ou, pior, poderia ser exterminada.
Naquela época, Leila, que viu a Palestina se tornar Israel quando tinha apenas 4 anos de idade, já considerava alguns avanços importantes na opinião pública sobre a ocupação israelense. “Em 1987, quando aconteceu a primeira Intifada nos territórios ocupados, o mundo todo começou a nos escutar. Viram as crianças jogando pedras contra tanques e todas as pessoas indo para as ruas. O mundo então descobriu a questão palestina e reconheceu Israel como um ocupante, um opressor. E temos, a cada dia, mais e mais pessoas ao nosso lado.”
Por isso, ao longo dos anos, o projeto *sionista, que anda capenga e nos revela cada vez mais governo e soldados medíocres, covardes e desumanos, ao mesmo tempo em que desrespeita tratados internacionais e viola direitos humanos, tem servido de alimento para o movimento de solidariedade internacional.
Sionismo
Movimento político e ideológico criado por judeus que serviu para sustentar a criação de Israel. Nasceu na Europa, no final do século XIX, e foi o responsável por uma onda de migração de judeus para o território palestino. Vale destacar que há judeus não sionistas, que não concordam com o projeto de colonização da Palestina e que, inclusive, se solidarizam e defendem o direito do povo palestino viver na Palestina como sempre viveu, antes da fundação de Israel, em uma sociedade pacífica formada por árabes – muçulmanos e cristãos – e judeus.
Ressoar a luta palestina
A resistência, como mostram figuras como Raffef Ziadah, Mahmoud Darwish e Leila Khaled, vai além da geopolítica: é uma questão de dignidade humana e sobrevivência. É um movimento legítimo contra a tentativa incessante de apagamento da existência palestina.
Darwish dizia que “ouvimos a voz da vítima troiana pela boca do grego Eurípedes”, mas ele buscava o poeta troiano. “Troia não contou sua história. Nasci entre um povo que não havia sido reconhecido até pouco tempo, e eu desejei falar em nome do ausente, em nome do povo troiano”.
Se há uma lição a ser aprendida com o último ano de conflito, é que a luta palestina é inevitável, justa e comum a todos nós. E que precisamos fazer ecoar, defender e propagar.
O povo palestino não será contido ou silenciado por ações nazistas, torturas, sequestros, expulsões, bombas, drones ou checkpoints. A resistência está no sangue, na poesia, nas pedras e nessas pessoas que, geração após geração, continuam a lutar.
Como Darwish nos lembra, a vitória ou derrota de um povo não se mede apenas em termos de força militar, e a dignidade e honra desse povo são indestrutíveis.
Confissão de um terrorista
Mahmoud Darwish
Ocuparam minha pátria
Expulsaram meu povo
Anularam minha identidade
E me chamaram de terrorista
Confiscaram minha propriedade
Arrancaram meu pomar
Demoliram minha casa
E me chamaram de terrorista
Legislaram leis fascistas
Praticaram odiada apartheid
Destruíram, dividiram, humilharam
E me chamaram de terrorista
Assassinaram minhas alegrias,
Sequestraram minhas esperanças,
Algemaram meus sonhos,
Quando recusei todas as barbáries
Eles… mataram um terrorista!
Como os palestinos nos ensinam, a resistência não se cala. Ela vive nas palavras, nas pedras e nos corações de todos aqueles que, geração após geração, lutam por justiça. Ressoemos essa força até o fim do massacre. Até que, com as chaves do retorno em mãos, o povo palestino possa retornar à sua terra nativa: a Palestina livre.
*os dados de mortes de palestinos têm como fonte o Ministério da Saúde de Gaza e da Cisjordânia.
Sâmia Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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